Historiador pesquisou a paisagem auditiva do futebol paulista nas primeiras décadas do século XX

Pesquisa de Guilherme Trevisan dos Santos interpreta produção e consumo de sons, cantos e vazios sonoros nas praças esportivas da cidade

Nicolau Tuma conduzindo a transmissão radiofônica de uma partida de futebol na posição de speaker. Fonte: A Gazeta, 24 de abril de 1933, p. 9-10.

Todo torcedor conhece o mesmo ciclo – nascer, crescer, aprender o hino de seu time, passá-lo pra frente quando chegar a sua vez e despedir-se dele, de preferência o tendo visto conquistar um título na arquibancada do estádio. Cantando, claro. Desde o século XX é assim. É o que revela a pesquisa de Guilherme Trevisan dos Santos, historiador e mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

Guilherme investigou as três primeiras décadas do século passado para entender os sons que ecoavam nos estádios de futebol de São Paulo. A pesquisa voltou os ouvidos à paisagem auditiva do esporte mais popular do Brasil e descobriu que, como os torcedores, os sons eram também heterogêneos.

Paisagem auditiva

A paisagem auditiva, termo que Guilherme escolheu para nomear esse objeto cheio de nuances, tons e vibrações, pode ser entendido como “fenômeno histórico quando apresenta conexões com a experiência humana, expressas nas figuras de emissores e ouvintes”.

São os gritos dos torcedores que se misturam aos comerciantes ambulantes vendendo amendoins e refrigerantes, aos aplausos e aos protestos – sempre presentes – contra o juiz. A paisagem auditiva é, portanto, aquele som que logo vem à memória quando vemos uma imagem ou lemos um relato de uma partida do Corinthians e Palmeiras. Ela não expressa apenas uma paixão: é afetada, também, pelo contexto social, econômico e político da partida.

A quem ouvir

Enfrentar a escassez de materiais em áudio foi um dos desafios de Guilherme. Se a popularização do rádio só aconteceu mais tarde, nos anos limites do estudo, a alternativa foi buscar em imagens visuais ou narrativas escritas para explorar as camadas sonoras que permearam as praças esportivas – como eram chamados os estádios. Acabou se tornando, assim, um trabalho sinestésico.

Foram consultados desde artigos de jornais, como O Estado de S. Paulo e O Correio Paulistano, a escritores da época, como o modernista Mário de Andrade. A multiplicidade de vocais e formatos ajudou a redesenhar a produção e o consumo, ambos banhados em sentido, do som. Mais do que isso, atribuiu à pesquisa um olhar sobre a sociedade paulistana daquele tempo, em plena efervescência e repleta de contradições rumo à modernidade.

A paisagem auditiva do futebol – a voz, o conteúdo, a algazarra ou falta dela – é capaz de imprimir um retrato sobre classe e poder, comportamento e sentidos. É como um carimbo muito característico de seu tempo e lugar. Ela revela os campos e estádios como um espaço em disputa “entre a nova ordem desejada e os diversos hábitos arraigados na população”.

O futebol experimentado no início do século XX, ainda muito jovem no Brasil, não passou isento pelos tantos momentos de ruptura e transformação nos cenários social e político. O esporte transformou paisagens dentro e fora dos estádios e, desde esse tempo, nunca deixou ausente a voz política. Registro disso é o trecho escrito por Jorge Americano em “São Paulo nesse tempo”: “Nesse momento não compreendi a arma política nascente, nem a revolução social que se aproximava. Até hoje me é difícil compreender o fenômeno. Uma bola, um pé que bate, outro que rebate. Várias xingações, um “juiz ladrão”, estaria aí a política, será esse o destino do mundo?”.

O trabalho compõe o quadro das poucas pesquisas que investigam a paisagem auditiva do futebol no passado. É, portanto, um passo importante para a compreensão da figura do futebol paulistano – e de suas expressões, cantos e hinos – como um personagem decisivo, para muito além dos campos.

A pesquisa foi defendida no final de abril de 2024, sob orientação do Prof. Dr. José Geraldo Vinci de Moraes.

Matéria escrita por Alessandra Barrozo, estudante de jornalismo na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e apaixonada por cultura e escrita. Atualmente escreve para a Agência Universitária de Notícias.

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