Apresentação

Dúvidas e curiosidades em torno das sensibilidades sonoras, formas de escuta, decifração dos sons e as possibilidades de registrá-los e difundi-los sempre estiveram presentes de diversos modos nas culturas. As estátuas egípcias conhecidas como Colossos de Mêmnom, por exemplo, carregam, há pelo menos 2050 anos, o mito de que nelas estavam guardados vários sons que poderiam ser acessados e escutados em condições determinadas. Formas e sinais de registros sonoros e melódicos foram encontrados na Mesopotâmia, Egito, Índia e China há milhares de anos. Mas as primeiras notações musicais estritas começaram a aparecer na Grécia entre os séculos II e I a.C. e desenvolveram-se até a formulação da linguagem escrita musical no século X. De outro lado, comenta-se que Pitágoras, no século V a.C., ensinava seus alunos em ambiente distante e encoberto por véus e cortinas; assim eles ouviam o mestre sem identificar a fonte sonora, para se concentrar exclusivamente na escuta. No século XVI, Rabelais, em Pantagruel, mencionava gritos, ruídos, palavras e melodias congeladas durante o frio exasperante do inverno e que poderiam ser ouvidas em seguida durante o degelo. Aborígenes em tempos imemoriais criaram seres totêmicos que registravam e reproduziam sons e cantos esquadrinhando boa parte do atual território australiano. Mitos indígenas na Amazônia quase sempre associaram os sons da natureza aos modos de vida humanos, formando uma autêntica trilha sonora da floresta.

Mas foi só com o aparecimento das tecnologias de registro e reprodução sonora, concebidas a partir último quartel do século XIX, que os sons e as escutas alcançaram dimensões culturais e históricas inauditas, já que pela primeira vez os universos dos mitos, da ficção, da memória e da escrita sonoras foram transpostos e de maneira profunda. As constantes inovações tecnológicas do início do século XX expandiram as possibilidades de produção, repetição e transmissão dos sons. Elas multiplicaram os questionamentos em torno do universo sonoro e ao mesmo tempo se associaram quase que imediatamente às emergentes músicas massivas. Sons até então limitados aos seus universos culturais originais puderam ser registrados, arquivados, transportados e potencialmente compartilhados com grande parte do planeta. Simultaneamente a materialização dos sons e a viabilidade de sua manipulação permitiram identificar nos próprios sentidos sonoros a reificação das relações sociais na forma de mercadoria. Por outro lado, as inúmeras experimentações sonoras e musicais inovadoras materializadas no transcorrer do século XX, desafiaram os ouvintes a direcionarem atenção a sons que antes não lhes pareciam escutáveis ou dotados de sentido num determinado contexto, salientando tanto os limites como as ampliações das escutas. Mais atualmente, os aparelhos miniaturizados e ligados em rede, colocam em ação simultaneamente uma infinidade de sons em escala inédita e que podem ser escutados e manipulados por programas, produzindo uma espécie de sonorreia. Toda essa dinâmica definida pela vida contemporânea colaborou para a desnaturalização do universo sonoro e retirou a música do “mundo das esferas”, indicando de maneira evidente que uma determinada época apresenta seus próprios modos de produção de sons, formas de ouvir de indivíduos e grupos sociais, e as maneiras de pensar sistematicamente sobre seus conteúdos.

Essas contingências temporais e culturais circunscrevem evidentemente um conjunto de práticas e concepções sociais associadas à produção de sons e escutas, que podem ser compreendidas como “cultura sonora”, objeto central de investigação deste Laboratório (LHCS). Essas culturas foram produtos de particularidades e dinâmicas temporais do passado que cada vez mais podem ser acessadas e conhecidas, mas que, por diversas razões, permaneceram distantes da historiografia por bom tempo. Porém, nos últimos anos esse panorama um tanto rarefeito mudou de modo evidente. Os estudos em torno da ideia de cultura sonora e dos sons se difundiu bastante nas últimas décadas. Já há algum tempo a História da Cultura incorporou esse universo aos seus territórios de investigação e tem tentado de diversos modos escutar os sons do passado. Os debates indicam a formação de um novo território de conhecimento com preocupações teóricas, metodológicas e temáticas próprias, retirando os sons e a música de seu isolamento historiográfico (como, p.ex., o Grupo de Estudo Entre a Memória e a História da Música e o Laboratório de Estudos da Música e do Som.

Desta maneira, a perspectiva deste Laboratório é a dos historiadores, preocupados com a audição do passado e os processos de construção do conhecimento histórico que tem os sons, a música e as escutas como eixos centrais. Ele pretende ser um espaço de discussão permanente e de percepção dos lugares dos sons na experiência histórica e de suas variações nas temporalidades. Mas ele não estará restrito a esses limites, pois o tema requer necessariamente uma postura interdisciplinar. Deste modo, seu objetivo é também criar um espaço de intercâmbio entre pesquisadores das ciências humanas e das artes sonoras de maneira geral.

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